Autor: Ivan Moraes Filho
Dentre as muitas participantes se apresentaram ao repórter três pessoas: Nena, Flávia e Gleiciane. Se o leitor me acompanha, fará algumas descobertas. A primeira delas é que na luta pela sobrevivência dos travestis há sinais que não notamos. Por exemplo, agitar a cabeça, jogando os cabelos longos sobre os ombros. Nas mulheres de origem biológica e definição, isso pode ser instinto de fêmea para seduzir, pura armadilha da feminilidade. Em travestis, não. É uma afronta dirigida à concorrente ou à intrusa. Marcação de terreno. “Desapareça! O que você quer?!”, gritam em silêncio com o jogar de cabelos nos ombros.
A segunda descoberta é que seus nomes não são simples nomes de guerra. Os nomes são as suas pessoas. Mais, o que não podíamos sequer adivinhar: o sexo macho de nascimento, para elas, é larva. Porque a sua plenitude é ser mulher. Daí que prefiram, exijam ser chamadas sempre com todos os substantivos e adjetivos no feminino. São as travestis. As meninas. As senhoras, damas, princesas ou senhoritas. Sem a menor sombra de ridículo ou ironia. Nasceram assim e são assim, um conflito vivo.
Nena Patrícia é uma jovem morena, com a pele a rebentar como uma adolescente. Tem 29 anos e aparenta ter menos. Daí que se pode acreditar na idade que declara. Alimenta, como todas, o sonho de encontrar um marido, de preferência carinhoso, trabalhador, fiel. Já Gleiciane é desconfiada e esquiva como poucas. Tem 38 anos, a pele clara, e conta que vai fazer o vestibular de gastronomia.
- Qual o divisor, qual o limite, de deixar de ser homossexual para ser travesti?
- Isso aí é uma questão de cabeça. Desde criança eu me identificava como mulher. A homossexualidade é diferente. Travesti é aquela que se veste 24 horas, que se caracteriza como mulher, que tem corpo de mulher, toma hormônio.
Flávia, a terceira a ser ouvida, aparenta ser a mais madura. Peço-lhe que se apresente, e cometo a indelicadeza de lhe perguntar a idade.
- Sou Flávia Desirée… 38 anos.
- Desirée… Por que esse Desirée?
- É porque é um sobrenome francês, cheio assim de significação… é um sobrenome mais forte.
- Você fez transformações no seu corpo?
- Sim, fiz. Fiz transformação injetável. Eu passei do hormônio para o silicone. Eu tenho o rosto siliconado, tenho os seios siliconados, tenho os quadris siliconados. Toda feita com silicone.
Das três, Flávia Desirée é a que possui mais experiência. Ao lhe perguntar se já sofreu violência, ela me devolve:
- Qual delas? Porque eu já fui sequestrada, já fui atirada (empurrada do alto), já me levaram pra mata, pro Lixão da Muribeca, para uma praia deserta, onde me fizeram tirar a roupa… e tudo isso tanto dos marginais quanto da polícia. Em várias cidades. Rio, São Paulo, Vitória…
- Em qual delas a barra é mais pesada para a travesti?
- Rio de Janeiro e São Paulo. É pior do que o Recife. Rio e São Paulo é mais problemático. Eu não sei se era por causa da época, década de 80, mas quando eu comecei a viajar, lá as coisas eram muito mais violentas. Em São Paulo muitas travestis se jogavam, se atiravam do viaduto, quando viam o carro da polícia. Muitas se escondiam, a polícia caçava com cachorro, dava choque elétrico.
Volto para Nena Patrícia. Das três é a que aparenta ser a mais frágil, ou a que procura se adequar a um ideal leve, de louça, a que um vento mais bravo poderia quebrar.
- Em um mundo ideal, você seria travesti?
- Seria. Se eu renascesse, voltaria a ser travesti. É como diz Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
- Mas você tem mais dor ou delícia de ser o que é?
- É…. (Silêncio) É uma delícia assim, porque eu sou o que sou, a minha pessoa, a minha expressão. Acho que é mais… é muita dor, mas também não poderia ser de outra forma, porque eu não saberia me reprimir. Seria mais frustrante viver reprimida, sem me expressar.
No que Flávia Desirée muito discorda.
- Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”. É uma vida muito sofrida, porque todo o mundo apedreja.
Ao fim, Desirée pede que na foto sejam evitados os seus pés. Quando a olhamos bem, descobrimos a razão. Calçando sandálias de borracha, não ficaria bem uma Desirée mostrar os pés feridos e inchados na revista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário